quinta-feira, 16 de setembro de 2004

A Tábua, as bolachas e a "Colchoaria de Lisboa"

Cada vez que ali passo, e não são poucas, lembro-me do meu barbeiro, o Galaio. Lembram-se do Galaio? Ali ao pé do Caravela, quase em frente à Zona Azul, um pouco mais acima.

A barbearia do Galaio era isso mesmo, uma barbearia. E o "isso mesmo" implicava um sítio onde se ía para dar dois dedos de conversa, combinar a próxima pescaria, às vezes até se ía lá pra cortar o cabelo, ou fazer a barba. O Galaio já cá não está deve haver uns quinze anos, e quando se foi já não era o meu barbeiro havia quase outro tanto, mas eu ainda passava por lá para "dar de vaia".

À entrada a porta tinha logo um poial onde eu me sentava a ler o "Falcão", ou o "Condor". Às vezes o "Mundo de Aventuras" que saía à quarta-feira e custava 25 tostões. A sala teria uns dois metros e pouco de largura por uns seis ou sete de comprimento; duas cadeiras de barbeiro, cada uma com o seu espelho. Tem piada que todas as cadeiras de barbeiro que tenho visto têm o mesmo monograma na pèzeira. Uma mesinha aparafusada na parede junto a cada espelho e, muito alto para a idade que eu tinha, uma pequena prateleira de vidro com meia dúzia de coisitas. Uma dessas coisitas era o Pescador. Um daqueles bonequitos com uns 10 cm, apoiados em duas perninhas de arame e segurando um outro arame que fazia de cana de pesca, que depois enrolava para debaixo da prateleira, deixando-o em equilíbrio e dançando um vai-e-vem teimoso quando a gente lhe dava um toque.

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A minha mãe dava-me dez tostões (agora chamar-se-iam meio cêntimo) e mandava-me para a barbearia do sr. Galaio, pouco depois de almoço que era para quando ele abrisse às quatro da tarde eu já ter vez marcada. Enquanto esperava, os meus sete anos ficavam fascinados pelas letras da "Colchoaria de Lisboa" pintadas a azul sobre a parede amarela do que é agora a Zona Azul, e pela almofada pendurada por cima da porta, que eu via a rodar com a brisa. Por mais que olhasse para os muitos automóveis que por ali passavam (um de dez em dez minutos), o meu olhar caía sempre teimosamente nas letras. Ainda hoje não consigo perceber porquê!

Às três da tarde abria a loja por baixo da barbearia, e eu apressava-me a comprar um pacote de bolachas Maria. Ainda têm o mesmo desenho. Enquanto esperava, trincava as bolachas com um ritual que ainda uso às vezes: começava por comer todo o friso à volta, deixando-a mais pequena mas impecavelmente circular; depois tentava que quatro dentadas ficassem distribuidas simetricamente...

Até que chegassem as qutro da tarde.

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Para a malta do meu tamanho havia "a Tábua". A Tábua era nada mais que uma simples tábua com duas travessas no lado de baixo, para não deslizar nos braços da cadeira. Servia para que a malta de palmo e meio ficasse mais alta (ou menos pequena, se assim quiserem) a fim do Galaio conseguir cortar-nos a trunfa. Sagrado dia em que o Galaio foi buscar a tábua e, ao chegar ao pé da cadeira "Ná! Tu já não precisas da tábua." E eu esticava-me na cadeira, mais emproado que um fuso, porque já me cortavam o cabelo sem precisar de me sentar na tábua.

Corte de homem implicava que o cabelo na nuca ficasse bem curtinho, e nisso o Galaio aprimorava-se.

As patilhas, depois de ensaboadas , sempre com água fria, eram acertadas à navalha. Ainda dava duas ou três tesouradas e vinha a pergunta fundamental: "Queres que faça uma poupinha?" A poupinha, celebrizada duas décadas antes pelo Elvis, voltara a usar-se. "Sim, faça a poupa". E o Galaio, com uma paciência maior que o castelo lá passava um bocadinho de brilhantina no pente e ajeitava uma "poupinha" à maneira.

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São pedaços da vida que não quero deitar fora. Quanto daria pra ir buscar um pacote de bolachas Maria e sentar-me à porta do Galaio, à espera das quatro da tarde...

1 comentário:

Anónimo disse...

E lembras-te do Xico Joia? Outro "tesouras" da nossa praça... :-)))))