sábado, 25 de setembro de 2004

Uma mão estendida, a outra na barriga

Há pouca poesia de que gosto. Alguma dessa está num sítio que há bem pouco tempo descobri, o Pedra a Pedra, e aonde se pode ir a partir das Sombra Frescas aqui ao lado. Não me perguntem por que gosto pouco de poesia. Sei lá. Talvez porque alguns se chamam poetas a si próprios apenas porque insistem em escrever só até meio da linha. No entanto, e sem me querer arvorar em poeta (mais a mais insisto em escrever até ao fim da linha) e porque é tão verdade como estar a escrevê-lo, relato-vos o que se passou comigo ontem, sexta-feira, pelas 4 e meia da tarde.
Já a tinha visto aí pela cidade, uma figura pequena e magra, lenço preto na cabeça, da cor do resto da roupa. Tudo o que não era negro não passava de cinzento escuro. Nunca tinha olhado para ela com olhos de a ver. Sei que já a tinha olhado, limitando-me a consumir a imagem que me era posta à frente. Ontem aconteceu olharmo-nos frente a frente, da mesma maneira que me barrou o caminho num passeio mais ou menos estreito. Parou a dois palmos de mim, a face à altura do meu peito e olhou-me bem nos olhos. O olhar sem brilho, cinzento claro, a única coisa clara naquele ser, estendeu-me a mão direita com a palma virada para cima. A esquerda pousou-lhe no estômago e iniciou um breve semi-círculo que logo parou. Compreendi perfeitamente e joguei a mão à carteira, envergonhado pela minha situação de ter mais do que ela. Rezava a todos os santos para ter uma moeda ali à mão. Por sorte para mim e para ela lá estava um euro. Uma simples moeda de um euro que me apressei a colocar-lhe na palma da mão, revoltado por dezenas de fantasmas que ali passavam, indiferentes à situação; fantasmas a quem apenas interessava ter 0,65 € por dia todos os dias da semana para comprar "A Bola" ou o "Record", ou uma revista que traga os 10 capítulos antecipados da novela, ou se o Zé Maria se suicidou ou está noivo. Apetecia-me escarrar na cara de alguns e algumas que sei vão todos os domingos papar uma missa, pôr uma moedita no prato da colecta e assim recebem duas doses de detergente para a alma, que fica rebrilhante; mas que ali me censuravam mudamente por ser "fraco". Apeteceu-me fugir dali para fora o mais depressa possível, pela vergonha de estar rodeado de coisas que de comum comigo pouco têm, a não ser andarem em duas patas... Apeteceu-me gritar bem alto que o rei se está nas tintas para quem pede. E que cada povo tem o rei que merece (ou quer).
Se for mais forte que a fome que lhe vi e continuo a adivinhar, se mais alguém tiver um pouco de vergonha, como eu tive, talvez tenha oportunidade de lhe dar mais umas moedas...

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