E mais uma vez cá estamos nós, babados de boas intenções, com os olhos brilhantes de emoção, como se os outros 364 dias (365 nos anos bissextos) tivessem sido exactamente iguais ao próximo 25 ("em intenções", porque "em acções" chega-te pra lá ó melga!).
Toda a gente é (?) feliz nesta quadra, acabaram-se os problemas, não há sem-abrigos, mulheres a levar porrada porque o clube de futebol do marido perdeu, putos violados, corruptos ao volante desta gaita a que alguns teimam (desavergonhadamente) em chamar país. Ninguém paga mais em impostos do que 10 % do seu vencimento, a sida foi-se pró camano, deixou de haver "a maior apreensão de cocaína deste ano" porque não é preciso distrair o pessoal das notícias a sério e os acidentes na estrada podem mesmo ser imputados ao empreiteiro da mesma porque a malta até é educada e no meio das pernas tem aquilo que a natureza lhe deu e não uma chave de ignição.
Nesta época o Presidente da República (com letra grande, pois então) até sabe ler e escrever, apesar de a Constituição (também com letra grande, pois então) não o exigir; apenas pede mais de trinta e cinco anos e cadastro limpo (alguém decretou que não há analfabestismo nesta gaita a que alguns teimam (desavergonhadamente) em chamar país).
À porta da igreja do Carmo, da de Santa Maria, Sé e outras, os pedintes até vão levar uma moedita porque nesta quadra (mas só nesta, nada de abusos...) as senhoras colunáveis cá do burgo não vão fingir que estavam olhando pró outro lado e, enquanto deixam escorregar o denário pelo cabedal (de imitação) das luvas, vão revirar os olhos num êxtase fingido que há mais de quinze anos não sentem e suspirar um "deus o abençoe", Aquele deus que teimosamente teimam em ateimar seu todos os dias entre duas dentadas num biscoito do chá das cinco com as amigas.
Toda a gente que trabalha vai receber o salário sem qualquer atraso, bem como o décimo terceiro. Os clubes de futebol (ou melhor, os seus dirigentes) vão pagar o que devem ao fisco e à previdência. A notícia de abertura dos telejornais e primeira página dos diários vai deixar de ser os futebolistas com dois meses de vencimento em atraso que ganham mais num mês que os coitados que não recebem há sete ou oito meses e não ganham num ano sem atrasos o que aqueles ganham em trinta dias (e que têm mulher, filhos, pais e mães pra sustentar, e não conseguem fugir ao fisco, à previdência e nem tampouco têm um sistema de saúde que os opere antes da missa dos trinta dias). E mesmo assim estes, (os que deveriam ser operados antes da missa dos trinta dias) continuam a bater palmas aos outros (os da notícia de abertura dos telejornais e primeira página dos diários) que vivem no mesmo sítio a que alguns teimam (desavergonhadamente) em chamar país.
Eu também vou fingir. Em vez de me dar bem com os meus semelhantes pelo simples facto de serem meus semelhantes vou fingir que o faço porque um qualquer ser superior decretou que assim deveria ser. Em vez de me dar bem com os meus semelhantes pelo simples facto de serem meus semelhantes, e sem qualquer interesse da minha parte, vou fingir que o faço com o intuito de comprar um bilhete para um paraíso, seja lá essa porra onde fôr. Vou fingir que quero ir para esse paraíso (seja lá essa pôrra onde fôr) e que abdico de lutar por ele aqui, na Terra onde vivo.
Se esse tal deus dos hipócritas, falsetes e ratas de sacristia que preside a todos os chás das cinco existisse, de certeza que iria compreender; a não ser que tivesse coragem pra continuar a fingir que existia.
1 comentário:
É Natal, é Natal (com letra grande, pois então) bom texto, gostei!
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